segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O estranho caso “D71” Contributos para o esclarecimento da polémica sobre os coeficientes do regime simplificado do IRS

Podia ser o título de um romance policial, leitura aprazível para o tempo de férias que atravessamos, mas infelizmente o tema que hoje abordamos é uma enorme preocupação para muitos sujeitos passivos de IRS.

A administração fiscal tem emitido diversos avisos de divergência na validação das declarações de IRS (código D71) alegando que o coeficiente para determinação do lucro tributável do regime simplificado de diversas atividades como por exemplo cabeleireiros, reparação e manutenção de produtos metálicos, reparação de veículos, estucador, pintor, eletricista ou canalizador é o coeficiente de 0,75, a que se refere a alínea b) do n.º 2 do artigo 31.º do Código do IRS.

Pela leitura do texto legal, os sujeitos passivos estavam convencidos que o coeficiente aplicável seria 0,10, pelo simples facto de as atividades acima elencadas não constarem da lista a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS.

Como é evidente esta diferença é significativa e da mesma resultam montantes de imposto claramente diferentes.

A questão que nos propomos abordar é esta: a AT tem razão?

Comecemos por analisar a origem da polémica.

A origem do problema: duas circulares com interpretações diferentes do texto legal

A reforma do IRC introduziu um novo regime simplificado para efeitos deste imposto. Em consequência, foram efetuados alguns ajustamentos no regime simplificado do IRS, aprovados na lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro).

Em março de 2014 e com a distância de apenas 8 dias, a AT divulgou duas circulares com esclarecimentos sobre a aplicação do(s) novo(s) regime(s) simplificado(s).

Já nessa altura tivemos a oportunidade de expressar a nossa discordância sobre o conteúdo da circular n.º 5/2014, de 20 de março, relativa ao regime simplificado do IRS, onde está expresso o entendimento no qual a AT se baseia para a tão polémica divergência “D71”.

De acordo com o entendimento divulgado através referida circular, o coeficiente de 0,75, a que se refere a alínea b) do n.º 2 do artigo 31.º do Código do IRS, é aplicável aos rendimentos auferidos no exercício, por conta própria, de qualquer atividade de prestação de serviços que tenha enquadramento na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do mesmo Código, independentemente da atividade exercida estar, nos termos do artigo 151.º do Código do IRS, classificada de acordo com a Classificação Portuguesa de Atividades Económicas (CAE) ou de acordo com os códigos mencionados na tabela de atividades aprovada pela Portaria n.º 1011/2001, de 21 de agosto.

O entendimento da AT expresso nesta circular é ainda mais explícito quando refere que estão igualmente abrangidas por este coeficiente as atividades incluídas no código “1519 - outros prestadores de serviços” da tabela do aludido artigo 151.º.

No dia 28 de março, a AT divulgou nova circular desta vez com esclarecimentos sobre o regime simplificado do IRC.

A circular n.º 6/2014 expressa um entendimento totalmente diferente no que respeita aos coeficientes a aplicar aos rendimentos em causa.

Refere esta instrução administrativa no ponto 12, parágrafo ii) o seguinte:

“No que se refere aos rendimentos de prestações de serviços, que não respeitem a atividades hoteleiras e similares, restauração e bebidas, o legislador do IRC prevê dois coeficientes distintos.

Assim, deve entender-se que o coeficiente de 0,75 e aplicável, especificamente, aos rendimentos das atividades profissionais concretamente previstas na lista anexa ao Código do IRS, sendo o coeficiente de 0,10 aplicável, genericamente, aos rendimentos das restantes prestações de serviços.

Convém notar que a palavra “especificamente” não constava do texto da lei à data, pois este termo só veio a ser adicionado à redação da alínea b) do n.º 1 do artigo 86.º-B do Código do IRC pela Lei n.º 82-C/2014, de 31 de dezembro.

Chegados a este ponto, perguntamos em que ficamos? Quem tem razão? O IRS ou o IRC? Ou será que é possível que as respetivas direções de serviços possam ter interpretações diferentes do texto legal?

Em nossa opinião, para podermos obter uma resposta consistente a fundamentada a estas questões temos de analisar a origem das alterações e os fundamentos que as motivaram.

É com alguma tristeza crítica que constatamos que continuam a ser produzidos extensos relatórios sobre matéria fiscal que não são lidos ou raramente são tidos em conta na produção de instruções administrativas.

Note-se que o objetivo das circulares é produzir esclarecimentos e proporcionar interpretações do texto legal que permitam aos sujeitos passivos e seus representantes compreender e executar as normas.

Contudo, uma circular não pode sobrepor-se ao texto legal, tanto mais que a nossa legislação proíbe a interpretação extensiva das normas fiscais.

A motivação das alterações

Em nossa opinião, a origem da alteração dos coeficientes do IRS está na reforma do IRC.

A intenção do legislador é bem clara, basta para isso atendermos ao que refere o relatório que acompanha o Orçamento do Estado para 2014.

Na página 67 desse documento pode ler-se o seguinte: “A reforma (do IRC) propõe um regime simplificado opcional (só aderem as empresas que assim o entenderem), aplicável a empresas com volume de negócios não superior a 200 mil euros e total de balanço não superior a 500 mil euros, abrangendo potencialmente mais de 330 mil empresas (70% do tecido empresarial). Simultaneamente, e de forma a equiparar os dois regimes, altera-se o regime simplificado de IRS nos mesmos moldes (quer em termos de coeficientes, quer em termos de limite máximo de volume de negócios), abrangendo cerca de 160 mil empresários em nome individual.”.

Concentrando a nossa atenção no segundo parágrafo parece-nos que tudo fica claro, as alterações no IRS foram efetuadas de forma a equiparar os dois regimes.

Percebe-se bem a intenção do legislador a qual visa evitar a continuação do que tem acontecido nos últimos anos, ou seja, a fuga generalizada de sujeitos passivos do IRS para o IRC inundando este imposto de entidades que não têm uma verdadeira estrutura empresarial.

Neste sentido permitam-nos sublinhar que o parágrafo citado refere expressamente a preocupação em equiparar os coeficientes do IRC com os do IRS.

Conclusão

Tendo em conta todo este raciocínio podemos desde logo concluir que não se mostra legítimo que a gestão dos dois impostos tenha interpretações diferentes sobre a aplicação dos coeficientes pois tal entendimento contraria claramente o espírito e a intenção do legislador, como ficou demonstrado.

Assim, resta-nos decidir quem tem razão, o IRC ou o IRS. Atente-se que quer com a reforma do IRS encetada em 2015 quer com a alteração efetuada também em 2015, à redação da alínea b) do n.º 1 do artigo 86.º-B do Código do IRC, ficou claro que o coeficiente 0,75 se aplica apenas às atividades especificamente constantes da lista a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS.

Nestes termos é legítimo concluir que em 2014, também apenas a estas será de exigir a aplicação do referido coeficiente, independentemente (neste ponto concordamos com a AT) da atividade exercida estar enquadrada num dos códigos da tabela do artigo 151.º do Código do IRS ou classificada de acordo com a CAE.

Como sempre, resta-nos esperar que o bom senso impere.

Termino com um desejo que é uma pergunta em simultâneo. Para quando a revisão da lista das atividades do artigo 151.º? É aqui que reside a origem de muitos dos problemas de interpretação, mesmo noutros domínios, como por exemplo no regime de transparência fiscal.

Texto elaborado a 2015-08-06 por Abílio Sousa para APECA




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